SOMOS CONTRA A QUALQUER TIPO DE DISCRIMINAÇÃO

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RACISMO É CRIME!

domingo, 19 de agosto de 2012

LEI MARIA DA PENHA COMPLETARÁ 06 ANOS, LEIA E REFLITA!!!


Sexta-feira, 17 de agosto de 2012 12:46 pm

Lei Maria da Penha completa seis anos

...sabotada por novos (velhos) Machismos


A Lei Maria da Penha* faz seis anos este mês. Um tremendo avanço nas lutas pelos direitos humanos e civis das mulheres brasileiras. Ainda há, entretanto, um longo e penoso caminho a ser percorrido por nossa sociedade até que tais direitos deixem de ser letras em leis e debates, e tornem-se parte do cotidiano social.

Ou seja, até que suas premissas tornem-se frutos amadurecidos nas mentes de homens e mulheres deste País. Teses como a de que todos são seres humanos e têm os mesmos direitos à vida e à liberdade de escolha de caminhos. O direito ao poder de decisão, em pensamentos e ações. Seres (auto) sustentáveis, até para poderem gerar e/ou cuidar de outros.

Para que nossas (futuras) gerações sejam saudáveis, acima de tudo, há que se dar um basta ao backlash (retrocesso) ora em marcha do reacionarismo patriarcal, que insiste nas demonstrações de poder e dominação. Não é sem razão o aumento escandaloso e surpreendente registrado nas estatísticas da violência e do preconceito contra as mulheres. No Brasil e em outras sociedades tradicionalmente machistas, em plena aurora do século XXI.

Os dados da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 , referentes ao primeiro semestre de 2012, mostram a grande dimensão da violência doméstica e familiar que atinge as mulheres brasileiras. Quase 60% dos relatos recebidos pelo Ligue 180 foram de violência diária contra a mulher: 19.171 casos. Em outros 21% dos registros, a prática de violência é semanal, com 6.856 denúncias. Confira a tabela sobre a frequência de atos de violência contra as mulheres, elaborada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM):

Fonte: Secretaria de Políticas para as Mulheres - SPM

Nesses seis anos da Lei Maria da Penha, o canal de denúncias Ligue 180 registra 52% de casos com risco de morte em relatos de violência contra as mulheres, segundo balanço divulgado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. De 2006 a 2012, a violência física (da lesão corporal leve ao assassinato) é a mais frequente nos registros do 180. O risco de morte foi relatado em 93.903 atendimentos (52%), e as ameaças de espancamentos chegaram a 83.442 casos (45%). A ministra Eleonora Menicucci, da SPM, afirma que os dados do Ligue 180 remetem à urgência na consolidação da rede de atendimento.

 Fonte: SPM

“Temos que acelerar o enfrentamento de todas as formas de violência
contra as mulheres, da primeira infância à velhice.” 
(Ministra Eleonora Menicucci)

Por incrível que possa parecer, presenciamos hoje o que a diretora-executiva da ONU Mulheres, Michelle Bachelet, classifica como “epidemia global”: ondas, ou tsunamis, de violência de gênero!

As novas leis e medidas do governo brasileiro, que envolvem diretrizes e campanhas das secretarias de Políticas para as Mulheres (SPM) e dos Direitos Humanos (SDH), são um avanço considerável para coibir tal violência. E, importante destacar aqui, políticas que servem também aos homens vítimas de agressões e tentativas de homicídio por parte das mulheres, bem como nos casos de violência doméstica entre os casais homoafetivos.

Há que se ressaltar que a violência contra os homens ou contra as/os parceiras/osLGBT (lésbicas, gays, bissexuais, e transgêneros) são menos denunciados, até pelo preconceito e o machismo sociais que inibem e envergonham as vítimas. Entretanto, dados globais atestam que as mulheres são mesmo as maiores vítimas, em mais de 90% das agressões.

A ignorância, o desconhecimento ou a superficialidade nos saberes, leva ao preconceito e à intolerância. Há que se ter consciência disso, pois é fato. Povos pouco educados, e fechados às mudanças culturais e psicossociais, estatisticamente, são os mais intolerantes, preconceituosos e afeitos à violência. À imposição de suas vontades e costumes pela força e pelo uso de chavões e alcunhas pouco criativos, chulos, ou ignorantes, mesmo.

O mais triste de tudo tem sido constatar que as novas gerações, as e os jovens, têm resgatado tais costumes e chavões, em uma suposta ação contrária ao que seria o “politicamente correto”.   A nova moda dos “anos 2000” parece ser ironizar e até agredir quem defende os direitos à diversidade e à sustentabilidade. Não há separação, aliás. Tudo é parte de um todo que deve ser harmônico: ambiente (urbano e natureza - mundo vegetal), seres humanos e os “animais”. Ou alguém ainda duvida disso?

Os/as “rebeldes” nunca estiveram tão sem-causa, e tão equivocados/as na ânsia em provar suas identidades. Ressuscitam ou mantêm velhos estereótipos e tradições patriarcais que remetem às gerações vitorianas, de extremo preconceito e rigidez quanto aos papéis de gênero, de raça e etnia, e de orientação sexual. Muito pelo próprio desconhecimento das questões, pelo despreparo e educação débil, em um sistema socio-educacional falho. 

Ao reproduzirem discursos e atos conservadores contra os movimentos em prol da sustentabilidade e da diversidade, tais jovens “rebeldes” estão, na verdade, promovendo o resgate do que de pior houve e há nas histórias sócio-culturais da humanidade.

Os movimentos reacionários às mudanças perpassam as gerações, sendo que quase 50% dos casos de violência de gênero são praticados pelos cônjuges que estão na faixa etária entre 30 e 39 anos. Os dados, divulgados pelo Instituto Sangari, evidenciam que essa violência é perpetuada nas famílias, por meio de modelos e estereótipos de gênero. Esses papéis e preconceitos sociais são também corroborados por todo o meio cultural.
  
Felizmente, tal padrão comportamental não é unânime entre os jovens do século XXI. Há os que inovam e querem, de fato, mudanças em sociedades onde o preconceito e a violência contra as diversidades sempre predominaram, caso brasileiro e de outras nações latinas. Exemplos de atitudes pela igualdade de tratamento e de direitos, ante as diversidades, são os movimentos e marchas globais de gênero (como a Marcha das Vadias ou das mulheres e a posse de seus corpos) e LGBT ( Orgulho Gay ), ou as raciais e étnicas, pelas ações afirmativas.


Mulheres da América Latina: "Este corpo é meu. Não se toca. Não se viola. Não se mata!"

Marcha(s) das Vadias 2012: Ucranianas protestam sobre o colapso dos sistemas sócio-econômicos
da Europa. "Estupradas pelo Euro"! Fotos: AFP

 Foto Janine Moraes/CB/D.A. Press 
Marcha das Vadias-Brasil 2012: Coragem para lutar (ainda) pela libertação feminina e a posse do próprio corpo, mais de 150 anos desde as primeiras ondas de Feminismos nos países eurocêntricos 

Prejuízos X Sustentabilidade

O fato de as mulheres, sendo mais de 50% da população mundial, continuarem discriminadas, exploradas, e sofrerem abusos em diversos níveis, nos âmbitos público e privado, prejudica e mesmo estanca o desenvolvimento sócio-econômico das nações.

Dados oficiais divulgados no último mês de abril, na XIII Conferência das Nações Unidas (ONU) sobre Comércio e Desenvolvimento, comprovam que a questãoIgualdade de Gênero já passou (há muito) do ponto de ser um problema moral para uma dimensão que engloba também a economia dos países e dos mercados. E também as finanças privadas, se pensarmos na economia doméstica.

Os prejuízos da violência acontecem em todos os níveis: 
Emocional, psicológico, físico e financeiro. 

A oficial para os Assuntos Econômicos e de Gênero da ONU, Simonetta Zarrilli, adverte que a discriminação contra as mulheres, em qualquer nível, pode converter-se também em fonte de instabilidade para as finanças e um obstáculo para o crescimento de um país.

O discurso de Zarrilli foi comprovado pelos dados apresentados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), durante a Conferência. Neles, a demonstração clara que os países desenvolvidos ricos, historicamente comprometidos em investir no fim das discriminações contra as mulheres, conseguem manter seus níveis de crescimento e/ou sair mais rapidamente das crises financeiras. É o caso da Alemanha, dos Estados Unidos, e dos países nórdicos, como Dinamarca e Noruega.

Como já defendido aqui no Blog da Igualdade isso significa que conhecimento e interação devem acontecer saudavelmente, em sociedades heterogêneas e multiculturais. Tanto em termos de políticas públicas dos governos locais, nacionais e internacionais, como de iniciativas acadêmico-científicas, empresariais, e das organizações não-governamentais.


Um Pouco de História

Nas questões das relações de gênero, tanto adultos como os/as mais jovens estão a desperdiçar mais de 170 anos de História das lutas e ondas feministas, desde as primeiras greves e movimentos das operárias da Revolução Industrial, em países como Inglaterra, Estados Unidos e França. Memoráveis, também, foram assuffragettes , que se acorrentavam por dias a fio em frente ao parlamento na Inglaterra - ou na França, nos Estados Unidos, e até no Egito, Brasil e outros países subdesenvolvidos - todas pelos direitos políticos de eleições e o voto das mulheres.

Poderia seguir nas inúmeras citações: aquelas 146 operárias que morreram a tiros devido à greve em uma fábrica de tecidos (Lowell, Massachusetts, EUA), em 1911. Ou as que fundaram a histórica Liga das Mulheres Trabalhadoras /Operárias do Comércio e Indústria WTUL) , em 1903, e que só foi extinta em 1950.

WTUL foi uma organização tanto da classe trabalhadora quanto das maisabastadas mulheres norte-americanas para apoiar a organização de sindicatos emelhorar as condições de trabalho feminino (e masculino) nas fábricas . Lutas, aliás, que elas começaram em 1834, tanto por salários, como por melhores condições e horários de trabalho, de no máximo 10 horas por dia, já que trabalhavam até 14 horas/dia.

  •  Elizabeth Cady Stanton (1815-1902), New York, EUA Escritora de peso, sufragista e ativista pelos direitos das mulheres.

Louise Weiss (primeiro plano), as suffragettes francesas, e cartazes da Nova Mulher 
"As francesas devem votar!" (circa 1910)

 
Parada histórica do Dia do Trabalho promovida pela WTUL (Liga das Mulheres Trabalhadoras/ 
Operárias do Comércio e Indústria), New York, EUA, 1908. 

Na história mais recente, vale lembrar as centenas de milhares de mulheres que foram às ruas, em boa parte do mundo, e apanharam muito nos anos 1960, 1970 e até os 1980, na luta pelos direitos humanos e civis. Foi o caso das brasileiras que, entre as décadas de 1970 e 1980, exigiram o fim das absolvições judiciais de homens que assassinam mulheres em nome “da legítima defesa da honra”. O lema dessas anônimas grandes brasileiras é citado até os dias de hoje: “Quem ama não mata”! Tampouco bate, espanca, estupra, ou abusa física e psicologicamente das mulheres e meninas.

As teóricas e as mulheres de ação, de peso em vários campos do conhecimento, que desde sempre contribuem para a formação mais justa e igualitária das sociedades. Se as leis e as tradições patriarcais mudaram ou foram extintas, ao longo das histórias das civilizações e nações, há que se agradecer a essas guerreiras e também à lucidez dos homens que as ajudaram nas conquistas.

 


Estatísticas do Terror: O Ser Politicamente Incorreto 

A relatora especial da ONU sobre violência de gênero, Rashida Manjoo, declarou recentemente a sua preocupação com os altos índices de violência contra mulheres e meninas. Segundo ela, a última década registra proporções alarmantes da violência de gênero, de acordo com os dados do relatório produzido para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra (Suíça). Mais mulheres e meninas estão sendo assassinadas por seus parceiros ou familiares, neste novo século.

Manjoo destaca que as mortes de mulheres e garotas em "nome da honra da família" estão sendo cometidas com altos níveis de impunidade em várias partes do mundo.Segundo as conclusões do relatório, muitos Estados (países) falham em garantir o direito das mulheres a uma vida sem violência.

As diretrizes da ONU quanto às medidas que devem ser tomadas pelos governos nacionais englobam investigações, acusações e sanções penais; tratamento das vítimas com respeito e dignidade; identificação dos grupos de mulheres com alto risco de sofrer violência, ante as múltiplas formas de discriminação. Rashida Manjoo destacou que a impunidade leva à crença de que a violência cometida por homens contra as mulheres seria “aceitável e inevitável”.

 
A relatora especial da ONU, Rashida Manjoo, lista as diferentes formas de violência de gênero, que seguem tradições patriarcais, culturais e religiosas, como as que ocorrem nas sociedades islâmicas – em países como a Jordânia e a Somália: apedrejamentos até a morte, por supostas infidelidades, e a Mutilação Genital Feminina. Ou as cristãs, para “lavar a honra”, como na Itália (ou as dos nossos colonizadores portugueses). Foto: Galeria da ONU

O que significa isso? Que também os jovens, ou seja, as novas gerações, têm corroborado com idéias e costumes “tradicionais” e as perpetuam em suas vidas e quiçá nas futuras proles. Em alguns casos, ainda com o apoio de governos nacionais e locais, em níveis públicos.

Foi mencionado no artigo “Infanticídio é ou não é Crime?”, aqui no Blog , o que ocorre, historicamente, em países como China, Índia, Paquistão, Bangladesh e em muitos do Oriente Médio e do Norte da África. Ou seja, nas sociedades onde as mulheres “valem” bem menos que os homens, o assassinato das meninas (e mulheres) é prática comum (e mais barata) para a contenção da explosão populacional.

De acordo com dados da UNICEF, há aproximadamente 50 milhões de meninas e jovens mulheres desaparecidas na Índia. Na China, são 40 milhões de meninas quesumiram , entre 1900 e 2000, segundo o estudo sobre as desigualdades de gênero –Feminist Economics – dos pesquisadores alemães Stephan Klasen e Claudia Wink, publicado em 2003. No Paquistão, apenas em 2010, foram achados corpos de mais de 1,2 mil bebês do sexo feminino, largados geralmente nas escadarias das mesquitas.

Em relação às jovens e adultas, as mortes ou ferimentos graves são por queimaduras, apedrejamentos, e a prática da mutilação genital feminina, que seguem acontecendo em quase todo o Oriente Médio, Extremo Oriente, África, e em outras regiões onde são perpetuadas as “tradições”.

 
Vilma Alves, da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher, em Teresina (PI), vocifera ao microfone, durante o I Seminário Nacional dos Direitos Humanos das Vítimas de Violência, 
na Câmara dos Deputados, em Brasília
: “Por trás de todo olho roxo, tem um homem frouxo...” 

A delegada Vilma Alves, de Teresina (PI), tornou-se uma referência no combate à violência contra as mulheres. Não apenas em seu Piauí, onde os índices de criminalidade contra as mulheres caíram bastante devido às políticas judiciais e policiais eficazes e de imediato atendimento às demandas. Ela é hoje uma espécie de popstar na defesa dos direitos das mulheres em nível nacional, após aparecer em entrevistas nos canais de televisão e outras mídias.

Sua fama não é sem motivos. Talvez seja uma das poucas representantes do poder policial a falar sobre o machismo e o preconceito brasileiros com tanta crueza, veracidade e firmeza. E demonstrar tanta paixão (e compaixão) em seu árduo trabalho.

Reproduzo as palavras do colega jornalista Marcelo Abreu, que por anos escreveu matérias e crônicas humanistas – muitas sobre as diversas formas de violência e da miséria social no País – nas páginas do Correio Braziliense . Durante o Seminário, ele foi impressionado pela delegada:

"Em seu discurso, a Vilma expressou o que pensa, como: ‘(...) E tem mais. Lá no Piauí, acabou essa coisa de mulher ser objeto de homem. Fazer sexo sem o consentimento dela é crime, é estupro. E não importa se a mulher é a esposa, a namorada, ou a rapariga. Eu enquadro na hora’, diz Vilma. Ô, mulher danada. Sensacional! Miudinha e arretada. O Piauí, hoje, é o estado onde menos mulheres são assassinadas pelos companheiros...”

Quão bom seria se mais da população brasileira participasse de debates como esse.“Foi um Seminário realmente produtivo, com gente que sabe falar sobre violência, que foi vítima dela, e sofre até hoje as suas consequências. Todo cuidado é pouco. Enfim, aprendi muito...”, conta Marcelo.

Este primeiro Seminário dos Direitos Humanos das Vítimas de Violência, realizado na Câmara Federal, deixou claro que os direitos garantidos em lei estão longe da realidade da população. Os principais debatedores ressaltaram a preocupação com os dados da violência no País. Os índices de assassinatos no Brasil superam os dos países em situação de guerra.

Só para dar um exemplo, a violência brasileira bate, em muito, a de países africanos como Angola, que sofreu por 27 anos com a guerra civil (de 1975 até 2002) e contabiliza aproximadamente 550 mil mortes de civis, nos últimos 30 anos. No mesmo período, mais de um milhão de pessoas foram vítimas de assassinatos ou mortes relacionadas à violência, direta ou indiretamente, no Brasil.

As vítimas invisíveis da violência também foram motivo de debate. A conclusão dos presentes no Seminário é que os familiares, aqueles que ficam após as tragédias, precisam de maior atenção nas políticas públicas. Aliás, é necessário estabelecer tais políticas no Brasil, pois não as há. Esta é a verdade. Certamente, é o que diriam as crianças e adolescentes, filhas e filhos órfãos da explosiva violência doméstica no País.



A assistência social é ínfima, ou até inexistente na maioria dos casos, tanto em nível financeiro e de provisão de (novos) lares, como na questão da provisão de tratamentos psicológicos e emocionais, principalmente às crianças órfãs. Em geral, quando as mães são assassinadas e/ou deixadas inválidas pelos pais, as crianças perdem os dois, já que o pai ou foge ou é preso. E os jovens? Como sobrevivem?

Há o programa Casa Abrigo , cujo melhor exemplo no Brasil está no Distrito Federal. As Casas recebem as mulheres vítimas ou ameaçadas de violência física e/ou morte, e seus filhos, quando os têm. O projeto provê as necessidades básicas dessas famílias-vítimas, como alimentação, estudos, lazer, o acompanhamento jurídico e psicológico, bem como a ajuda para encontrarem trabalho e recomeçar suas vidas longe do agressor.

 
A Cartilha lançada pela Previdência Social será distribuída 
em 1,3 mil agências do INSS, em todo o Brasil. 


Outro passo para ajudar as vítimas foi dado em junho passado. O governo brasileiro, por meio da Previdência Social, decidiu estancar a sangria de recursos públicos devido à violência de gênero. E doerá no bolso do violador. O INSS elabora ações judiciais para cobrar dos agressores os gastos com o pagamento de benefícios às vitimas e suas famílias.

As ações regressivas, como são chamadas, abarcarão os casos de aposentadoria por invalidez, pensão por morte (às famílias), e auxílio-doença, quando a vítima precisa se ausentar do trabalho por mais de 15 dias.

A primeira ação do INSS é justamente contra o ex-marido de Maria da Penha. A Previdência Social visa recuperar os gastos com a aposentadoria por invalidez da farmacêutica. O valor a ser pago por cada um dos condenados nessas ações regressivas dependerá de critérios judiciais. O INSS entrará com pedidos de ressarcimento integral do valor dos benefícios pagos.

Maria da Penha Fernandes gravou mensagem para a Central 135 , serviço telefônico do INSS, que será ouvida por cerca de 7,5 milhões de pessoas neste mês de agosto, aniversário da Lei Maria da Penha. Para sensibilizar a população sobre o problema da violência contra as mulheres e meninas, o INSS também vai distribuir, para suas mais de 1,3 mil agências em todo o Brasil, a cartilha “Quanto custa o Machismo?”

Segundo a assessoria da Previdência Social, a cartilha "Quanto Custa o Machismo?" traz material com informações sobre a Lei Maria da Penha, enumera benefícios e serviços do INSS que podem ser requeridos em caso de violência doméstica praticada contra as mulheres, e esclarece “mitos e fatos sobre o tema”. A cartilha vai divulgar, também, o número da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180 , canal da Secretaria de Política para as Mulheres para as denúncias de violências. 

diretora-executiva da ONU Mulheres, Michelle Bachelet, pede o fim da tolerância e impunidade à violência contra as mulheres e meninas: a violência de gênero representa uma epidemia global. "Que as vozes das mulheres sejam ouvidas, para mudar a realidade ainda tão desigual que ocupam na sociedade”. Foto: UN Women Gallery

No caso das mulheres, as estatísticas da violência referentes ao Brasil, tanto da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto do banco de dados do Sistema Único de Saúde (DATASUS), revelam números aterradores, que tornam concretos os resultados dessa História: entre 84 nações avaliadas pela OMS, o Brasil está em sétimo lugar em assassinatos de mulheres (o chamado femicídio).

Por conta da violência doméstica durante a última década, entre 10 a 12 mulheres morrem, por dia, no País (um assassinato a cada duas horas). Entre 1980 e 2010, ocorreram quase 91 mil femicídios no Brasil – quase o dobro dos soldados norte-americanos mortos em toda a Guerra do Vietnã.

Segundo a pesquisa realizada pelo Instituto Sangari, que produz o Mapa da Violência, das 91 mil mulheres assassinadas por (ex) companheiros no Brasil, nos últimos 30 anos, 43,5 mil dos casos ocorreram apenas na última década. Desde 1980, a estatística passou de 1.353 casos de femicídios para 4.297, o que representa um aumento de 217,6%, neste início de século XXI. 

Em 56% dos casos das mortes de mulheres, as causas são por espancamentos, sem o uso de armas de fogo ou objetos cortantes. O pior: em quase 52% dos assassinatos, a violência doméstica já havia sido registrada em delegacias do País, o que denota, no mínimo, falhas na aplicação das leis e no sistema de segurança pública, descaso ou falta de efetivo policial.

O número de assassinatos de mulheres no Brasil (cinco em cada 100 mil habitantes) só é menor do que o de países como a África do Sul (25 por 100 mil habitantes) e a Colômbia (oito por 100 mil habitantes).

DF Lidera as Denúncias

O Distrito Federal está em primeiro lugar em queixas recebidas pelo disque-denúncia da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SEPM), do Governo Federal. A Central de Atendimento à Mulher no DF, com o Ligue 180, recebeu 303,14 ligações a cada grupo de 100 mil mulheres, entre janeiro e março deste ano. Em seguida, aparecem os estados do Espírito Santo (275,15 a cada grupo de 100 mil mulheres), Pará (270,54), Mato Grosso do Sul (264,74), e Bahia (264,03).

Embora haja mais registros de violência doméstica, o DF está na 7° posição na taxa de assassinatos de mulheres, com 5,8 mortes por grupo de 100 mil mulheres. De acordo com a Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM/DF), que tem reconhecimento internacional por seu pioneirismo e eficácia, são registradas, em média, 15 ocorrências por dia.

O alto índice de denúncias deve-se ao processo de conscientização da população e ao encorajamento das mulheres, que passaram a denunciar as agressões. As mulheres do DF têm reportado também as ameaças ou injúrias, o que previne a violência física ou a continuidade do massacre emocional e psicológico.

Outro benefício da Lei Maria da Penha é o fato de a vítima não poder mais desistir da ocorrência, uma vez registrada. A instauração do inquérito policial é obrigatória, o que é mais uma medida de proteção para as mulheres. Antes da Lei, algumas vítimas retiravam as queixas, ou por ameaças dos (ex) companheiros, ou devido às promessas de melhoria no relacionamento – que raramente são cumpridas, segundo as estatísticas. As vítimas podem, ainda, solicitar medidas de proteção judicial.



Ações, Cidadãs!

O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ) divulgou, esta semana, o Dossiê Mulher – 2012, referente aos casos de violência contra as mulheres e meninas, a partir das notificações da Polícia Civil em 2011. Em termos percentuais, o estupro é o crime que mais atinge mulheres e meninas no Estado. Houve aumento dos casos em relação ao ano de 2010. Das quase 5 mil queixas de estupro registradas no estado do Rio de Janeiro, em 2011, 82,6% das vítimas são do sexo feminino, sendo que mais da metade delas, 53,6%, foram meninas de até 14 anos. Confira o dossiê em:



Durante o Encontro Nacional “O Papel das Delegacias no Enfrentamento à Violência contra as Mulheres”, ocorrido em Brasília, na semana passada, ficou evidente a necessidade de fortalecimento da rede de proteção à mulher vítima de violência. Especialistas destacaram a falta de estrutura nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, sendo que muitas funcionam em instalações físicas precárias e com equipamentos defasados. Condições inadequadas de trabalho prejudicam o sistema de informações sobre as ocorrências de atendimento às mulheres, conforme a socióloga Wânia Pasinato, professora da Universidade de São Paulo, que citou dados do Observatório Lei Maria da Penha, em 40 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher das capitais dos estados brasileiros.


CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) da Violência contra a Mulher realizará audiências públicas em Campo Grande (MS), nos dias 21 e 22; e em Curitiba (PR), nos dias 24 e 25. Como fez em 10 outros Estados, onde são registrados mais casos de violência contra as mulheres, a CPMI analisará a estrutura de atendimento público às vítimas de violência nas duas capitais. Também serão realizados debates sobre o assunto com especialistas nas respectivas Assembléias Legislativas do Mato Grosso e do Paraná. Este último é o 3º Estado brasileiro com maior número de assassinatos de mulheres, segundo o “Mapa da Violência 2012”, elaborado pelo Instituto Sangari em parceria com o Ministério da Justiça.

NOTA: Em 2006, o Congresso Nacional aprovou e entrou em vigor no País a lei nº 11.340, a Lei Maria da Penha. O nome popular da lei é referência ao caso emblemático da farmacêutica Maria da Penha Fernandes, que ficou paraplégica, havendo sobrevivido aos tiros e às agressões do marido, nos anos 1980.

Sobre esta Blogueira:

Sandra Machado é jornalista e professora universitária. Doutora em História – com pesquisa em Estudos de Gênero, das Mulheres, Cinema e Multiculturalismo, pela Universidade de Brasília (UnB). É também Mestra em Cinema e Vídeo pela American University, Washington, D.C. Trabalhou como repórter e produtora para mídias audiovisuais e impressas - Correio Braziliense, Jornal do Brasil, TV Globo e o Caderno de Livros de O Globo. Sua tese de doutorado está em processo de edição em livro, intitulado Câmera Clara - Tela Obscura: Estereótipos Femininos e Questões de Gênero nos Cinemas. Editora Francis & Verbena. 


Sexta-feira, 10 de agosto de 2012 03:05 pm

Infanticídio é ou não é Crime?

Criança Indígena é Cidadã e tem Direitos


Capa da Revista do Correio (05/08/2012): mães indígenas recebem abrigo de ONG em Brasília. 
Muitas deixam as aldeias para evitar a morte dos filhos. Foto Zuleika de Souza CB/D.A. Press

É rotineiro nos surpreendermos com afirmações categóricas sobre como não podemos, ou não devemos, interferir nas liberdades, na privacidade, ou nos hábitos/costumes socioculturais dos “outros”. Bom, isso até nos depararmos com algo que consideramos, e que talvez seja mesmo, “monstruoso”.

Aí entram em cena os tais tabus e os “defensores das tradições” de comunidades, sociedades ou nações. Insistem em veemente nos jogar na cara que não temos nada, absolutamente, a ver com hábitos históricos, tradições culturais dos povos, quase sempre seculares ou até milenares.

É o caso da prática da Mutilação Genital Feminina (FGM), em diversas nações e comunidades islâmicas – que já foi motivo de artigo aqui no Blog da Igualdade . Ou o apedrejamento de mulheres até a morte, por supostos adultérios (raramente comprovados judicialmente), também segundo as tradições religiosas e culturais, em países (médio) orientais. E quem não sabe ou se lembra do tempo, não tão distante assim, em que os homens brasileiros podiam matar (mulheres) para “lavar a honra”, ou em “legítima defesa da honra”, pois seriam absolvidos pelas leis arcaicas patriarcais?

A lista de práticas ou costumes culturais considerados absurdos, hoje condenados veementemente pela Organização das Nações Unidas (ONU), pode seguir indefinidamente (muitas já debatidas neste Blog ): a criminalização da homossexualidade e a violência contra os LGBTT; a escravidão, discriminação, e omissão históricas contra os povos africanos e seus descendentes nas colônias eurocêntricas; o mesmo pode ser mencionado também contra as mulheres, brancas e não-brancas; ou o não-reconhecimento dos direitos humanos e civis dos idosos ou das crianças e dos adolescentes...

Pois bem. Esta semana, a Revista do Correio publicou uma reportagem especial sobre o infanticídio (assassinato de crianças) praticado em algumas comunidades indígenas brasileiras. Não são muitos os casos registrados “oficialmente”, e são minoria entre as mais de 220 etnias/povos que compõem o universo de 650 mil índios que habitam o território nacional. Entretanto, persiste ainda hoje, em ao menos 13 povos indígenas no País, a tradição de “eliminar” crianças indesejadas e/ou rejeitadas pelos líderes de aldeias.

Segundo a matéria da Revista , a única sondagem oficial conhecida acerca do infanticídio em comunidades indígenas foi feita pela Fundação Nacional de Saúde, antes da criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Entre os Yanomâmis, a estatística de um total de 201 crianças mortas, apenas entre os anos de 2004 e 2006. Hoje, há aproximadamente 15 mil Yanomâmis no Brasil, distribuídos em 255 aldeias entre os estados de Roraima e do Amazonas. E há outros 12 mil que vivem na Venezuela.

Extra oficialmente, ao longo da história das formações (ou das dissoluções) étnicas indígenas brasileiras, há comprovações e relatos sobre a prática “tradicional” do infanticídio e/ou o neonaticídio (assassinato de recém-nascidos de até 24 horas), anotados por diversos indigenistas. A ressalva é que a literatura existente sobre os casos vem de pesquisadores estrangeiros, já que os brasileiros, em sua maioria, preferem omitir as questões “embaraçosas”.

É o exemplo dos infanticídios ocorridos ao longo das histórias de povos tradicionais, como os Bororo (MT), Tapirapé (MT e TO) e os Korubo (no oeste da bacia amazônica).   Segundo a Revista do Correio , um cacique da etnia Kamayurá teria mostrado em programa de TV da Alemanha um cemitério onde foram enterradas mais de 100 crianças “eliminadas” pela sua comunidade.


Crianças Yanomâmis exercitam com arco e flexa: Primogênitos meninos são prioridade
para a maioria das etnias indígenas no Brasil. Foto: Reprodução do G1.com (TV Globo) 

Arcaísmo Patriarcal “Sanitário”

As causas para a rejeição e o conseqüente infanticídio seriam por questões que supostamente propiciariam um desequilíbrio na vida da comunidade, seja por razões sociais, econômicas, ou culturais. São filhos/as de mulheres solteiras e/ou de paternidade desconhecida; crianças doentes/deficientes; irmãos gêmeos; meninas primogênitas consideradas “castigos divinos, almas ruins, ou estorvos para a sobrevivência e harmonia da comunidade”.

Na maioria dos casos de infanticídio entre os povos indígenas, a causa principal parece mesmo ser o controle populacional, para que a dinâmica socioeconômica da comunidade não seja afetada. As crianças seriam enterradas vivas, envenenadas, e/ou abandonadas na floresta, à própria sorte.

Já ouvimos essa história em algum lugar, não é? Principalmente, em sociedades com tradições e leis ultra-patriarcais, como a maioria das latinas, (médio) orientais, ou africanas. Tais costumes são e foram já condenados, ao menos oficialmente, pela maioria dos governos nacionais, locais/tribais e/ou pela ONU e seu organismos competentes, como o UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas); pela UN Women (ONU Mulheres); UNESCO e UNICEF (ONU para a Educação, Ciência e Cultura e para a Criança, respectivamente).

Já “fora da lei”, os governos de países de tradições patriarcais simplesmente fecham os olhos (e ouvidos e bocas) para as hordas de infanticídios/neonaticídios de meninas. Ocorrem, historicamente, em países como China, Índia, Paquistão, Bangladesh e em muitos do Oriente Médio e do Norte da África. E acontecem, sim, entre os povos indígenas das Américas, inclusive nos Estados Unidos.

Nas sociedades onde as mulheres “valem” bem menos que os homens, o assassinato das meninas é prática comum (e mais barata) para a contenção da explosão populacional, e a preservação da economia familiar, em nível privado, e das finanças das comunidades e/ou nações, em nível público.

De acordo com dados da UNICEF, há aproximadamente 50 milhões de meninas e jovens mulheres desaparecidas na Índia. Na China, são 40 milhões de meninas quesumiram , entre 1900 e 2000, segundo o estudo sobre as desigualdades de gênero –Feminist Economics – dos pesquisadores alemães Stephan Klasen e Claudia Wink, publicado em 2003. No Paquistão, apenas em 2010, foram achados corpos de mais de 1,2 mil bebês do sexo feminino, largados geralmente nas escadarias das mesquitas.


Pequeninas pintadas para a festa. A noção patriarcal de mais valia do homem também
ocorre entre muitos povos indígenas brasileiros. Reprodução do G1.com 

O termo “desaparecimento” alcunhado nas pesquisas tem a mesma conotação, ou eufemismo, do adotado aqui no Brasil: a “eliminação” das crianças indígenas. Todos sabem que elas foram assassinadas ou abandonadas para morrer, desamparadas, nas florestas. E quase todas são meninas, pelos mesmas razões de “valor” humano (mais valia) agregado aos meninos.

O que é altamente questionável, no caso dos povos indígenas do Brasil, é a necessidade de se continuar com tais “tradições”. As políticas e ações do resgate social e econômico (inclusive a redistribuição agrária), ainda que lentas ou insatisfatórias, avançam. Sem mencionar os novos recursos da saúde e medicina, dos transportes, ou das tecnologias repassadas aos povos indígenas. Não há motivos para tais “seleções” aleatórias. A não ser que, de fato, a comunidade que as pratica ainda esteja totalmente isolada.

De outro modo, a maioria das comunidades indígenas tem conhecimento sobre outras possibilidades que não a morte ou o abandono das crianças. Ou seria dever dos governos federal, estadual e local, por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai) e seus órgãos competentes (como a Sesai), informarem e oferecerem suporte às famílias, principalmente, às mães e/ou responsáveis que desejam manter as crianças “indesejadas”.

Não é o que acontece. Pelo contrário, há tentativas de esconder, minimizar, ou omitir a questão da sociedade brasileira (ou internacional). Tanto por parte das citadas instâncias governamentais brasileiras, que seriam responsáveis, como por parte de indigenistas, acadêmicos, e das ONGs que lutam pelos direitos indígenas no País. Os organismos da ONU também são lenientes quanto às questões indígenas brasileiras, como se o tabu fosse maior do que a obrigação de promover campanhas e o diálogo entre as partes envolvidas.

Em sua crítica da razão pós-colonial, a conceituada filósofa indiana Gayatri Chakravorty Spivak, professora da Universidade de Columbia (EUA), trilha a figura do “informante nativo”, por meio de várias práticas culturais, e sugere que ele emerge como um híbrido metropolitano. O livro aborda filósofos, críticos e intelectuaisintervencionistas como eles se unem e se dividem.

Autora Gayatri Spivak: teoria do hibridismo cultural 

Spivak delineia a noção do “intruso” do Terceiro Mundo, enquanto pura vítima de umopressor colonialista, e o vê sob forte suspeitas a lama que funda em certosantepassados aparentemente arrogantes pode ser o próprio chão que pisamos na era contemporânea , também nos países em desenvolvimento.

As guerras de cultura" parecem não acabar. Spivak questiona quais são as relações das lutas de gênero e as dinâmicas de classe (sociais) No tratamento dos estudospós-coloniais , um campo que ela ajudou a definir Spivak coloca essas questões a partir do (atual) pós-colonial enclave – um estado autónomo envolvido por outro ou o território de um país encaixado em território de um país estranho.


Uma Crítica da Razão Pós-Colonial 

O coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) do Acre, Lindomar Padilha, chega a citar, para a Revista do Correio , as “mães não indígenas” que abandonam suas crianças logo após o nascimento, para defender sua posição contrária à criminalização da prática do infanticídio em algumas comunidades indígenas.

Bom, primeiro que não são apenas as “mães” que abandonam e/ou matam seus filhos. É toda a estrutura social: pais ausentes e que não se responsabilizam enquanto co-genitores, ou a família como um todo; e tampouco os governos e as instituições sociais.

E não é crime? As sociedades internacionais e a brasileira, legalmente ao menos, condenam os pais, mães ou responsáveis pelo abandono, abusos e/ou assassinato de menores. Para quê ou para quem servem, afinal, as leis e os estatutos, como o da Criança e do Adolescente, no Brasil? Não serviriam também para as crianças indígenas? Elas não estão vivendo em solo brasileiro? Não são consideradas cidadãs?

As leis e os estatutos sociais, que em tese asseguram o direito à preservação e ao bem-estar, devem ser de e para todos. Se queremos direitos iguais, devemos ter deveres iguais também. Se lutamos pelos direitos humanos e civis das chamadas “minorias”, temos que reconhecer, igualmente, seus deveres. Então, todos têm direitos e deveres. Não dá para conceder apenas direitos, ou melhor, promover o resgate e o pagamento das dívidas históricas (com os povos indígenas) sem que haja a contrapartida dos deveres.


Pode o Subalterno Falar?

E é absurdo que se queira, ainda neste século XXI, preservar o mito do “bom selvagem” e que cada povo “tradicional” possa seguir com seus costumes, ainda que sejam assassinatos ou abusos contra crianças, mulheres ou quem quer que seja. Não importa se é cidadão ou cidadã, da raça branca ou não-branca; heterossexual ou homossexual (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros); jovem, adulto, idoso, ou criança.

Se tomarmos por princípio que as “as culturas são como rios: não se pode mergulhar duas vezes no mesmo lugar, pois estão sempre mudando”, como afirma o antropólogo norte-americano Marshall Sahlins, temos a noção de dinâmica cultural. Ou seja, a cultura não é uma essência, uma vez que está sempre em transformação. A cultura não “é”, ela “está”. Culturas são criadas, significadas, e alteram-se e re-significam. Seres humanos sempre manipularam e foram manipulados pelas (trans) formações culturais.

As cartografias de nomes – como brancos, índios, negros, latinos; “primitivos” e/ou “civilizados”; “bárbaros” ou “romanos” – são denominações aleatórias, impingidas por uma cultura que se quer dominante sobre outras: por isso, hoje, o pós-colonialismo denomina como “Outros” as chamadas “minorias”. Isso porque quem seria minoria? E de qual ponto de vista? As mulheres são minoria no mundo? Os negros? Os orientais? Onde é que esses seres humanos são minorias?

Não são minoria, não. Entretanto, assim podem ser considerados, devido ao imenso desnível ou miséria social, econômico-financeiro e educacional, a que mulheres (brancas ou não), negros ou índios (habitantes nativos das regiões colonizadas por europeus) foram historicamente submetidos, em diversos países. Por isso, há que se promover o resgate e o pagamento dessas dívidas seculares para com tais “Outros”. Sim, há que se ter cotas de emprego e nas instituições educacionais. Principalmente, nas públicas, que pertencem ao Estado, e são mantidas com os impostos de todos.

Etinia, prá que te quero! 

Por outro lado, vale mencionar um artigo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional (n º 18, de março de 2007), intitulado “Etnia, Prá Que Te Quero”, e com uma sugestiva chamada de capa: “Minoria: Ser ou não Ser – Brancos, Índios, Quilombolas... o Jogo de Interesses Por Trás do Debate Étnico Nacional”. Na pesquisa feita pelo jornalista e mestre em saúde pública pela Fiocruz, Lorenzo Aldé, fica clara a questão da disputa de (novos) interesses sociais (inclusive as questões agrárias), enquanto “minoria”. Aí, não!

O surgimento de povos e comunidades tradicionais, ou novas divisões étnicas para povos miscigenados, caso dos índios “Tumbalalá”, oficialmente reconhecidos em 2001, favoreceu um incrível crescimento da população nas terras indígenas brasileiras. No caso dos Tumbalalá, há a miscigenação entre grupos de sertanejos da caatinga e os índios cariris, aldeados pelas missões que se espalharam pelo vale do Rio São Francisco, no século XVII.

De acordo com o IBGE, entre 1991 e 2000, a população indígena brasileira cresceu (incríveis) 150%. “O que só se explica pelo fenômeno da auto-declaração no Censo”, afirma Lorenzo Aldé, em seu artigo. Ou seja, comunidades formadas por uma miríade étnica, tipicamente brasileira, passaram a declarar-se parte das minorias indígenas.

Na mesma Revista de História , a antropóloga e professora da Universidade de São Paulo (USP), Lilia Moritz Schwarcz, autora do livro O Espetáculo das Raças. Cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 1870-1930 , defende que grupos étnicos criam culturas, tradições, expectativas, memórias e até “naturezas”. E que a própria noção de identidade não poderia, pois, “ser entendida como ponto de chegada (uma chave de consciência das origens)... ela é a chave de partida”. Portanto, há que se diferenciar (as culturas) “sem hierarquizar”.

Espetáculo das raças: 
adaptação das culturas
e agenciamento da produção 

Então, o mito ou o ideal do “bom selvagem” seria mesmo uma falácia. Primeiro, quem é ou seria o “selvagem” e o que isso significaria, de acordo com qual ponto de vista? Segundo, se os não-indígenas sentem-se na obrigação do resgate social, devido à culpa, os indígenas “resgatados”, com efeito, elaboram e reelaboram suas culturas, as recriam e passam a “agenciar” seus produtos e/ou modos de vida.

As culturas estão vivas. “Um movimento pode até começar por influência externa, mas depois eles dão a volta, transformam-se em sujeitos, criam auto-estima”, atesta Schwarcz.

Em suma, não sejamos inocentes ou ingênuos a ponto de achar que uma cultura ou tradição sociocultural/religiosa é “intocável”. Ou que devemos respeitar atrocidades em nome da “tradição”. O respeito e o silenciamento em relação aos costumes e hábitos somente fazem sentido no caso de todos os envolvidos terem seus direitos e deveres preservados – o chamado bem-estar social.

Pode o Subalterno Falar? Essa questão, fundamental, foi introduzida nas teorias pós-coloniais pela indiana Gayatri Spivak. Caso tivessem voz, o que nos diriam as crianças indígenas (e as não-indígenas – brancas, negras ou orientais) que são abusadas, violentadas e/ou assassinadas, diariamente, em todo o Brasil? Ou as dos outros países?


A Crítica Pós-Colonial:
Estratégias e Diálogos


ONU: Hora de agir


Ações e novas políticas públicas precisam, mesmo, ser repensadas e postas em prática por organismos governamentais nacionais e internacionais para melhorar as condições de vida de crianças e adolescentes, em todo o mundo. Essa urgência foi debatida durante a 45ª Sessão da Comissão sobre População e Desenvolvimento, realizada em abril na ONU. O relatório é contundente: uma ação é necessária para proteger e cumprir os direitos humanos das pessoas jovens. Particularmente, o direito à saúde sexual e reprodutiva.
 
Foram ações enérgicas por parte de governos nacionais e locais, pressionados pela comunidade internacional, que determinaram, por exemplo, o fim da prática cruel da Mutilação Genital Feminina em quase duas mil comunidades de toda a África. Assim, chegou a oito mil o total de comunidades que renunciaram à FGM nos últimos anos, segundo levantamento feito pelo UNFPA e pela UNICEF, em 2011.

“Essas constatações encorajadoras mostram que as normas sociais e as práticas culturais estão mudando, e as comunidades estão se unindo com o objetivo de proteger os direitos das meninas e das mulheres”, disse Babatunde Osotimehin, diretor executivo do UNFPA, no Dia Internacional da Tolerância Zero com a Mutilação Genital Feminina (6 de fevereiro) .

Somente com trabalhos de diálogo e enfrentamento das questões culturais “tradicionais”, as e os jovens serão capazes de contribuir plenamente para o desenvolvimento de suas comunidades/países. “A necessidade de investir em pessoas jovens é mais urgente que nunca, agora é a hora de agir”, conclamou Osotimehin. Em suas palavras sobre a situação da juventude, está uma realidade para a maioria das crianças e adolescentes do Brasil, independente da raça ou etnia:

“Muitos supõem que todas as pessoas jovens têm acesso à informação, que a maioria provavelmente está na escola, que adiam a entrada no mercado de trabalho até terminar os estudos, e que postergam o casamento e a maternidade até se sentirem preparados. Contudo, essa não é a realidade para todas e todos os adolescentes e jovens ao redor do mundo. Na verdade, muitas destas questões ainda são um grande desafio para a maioria das e dos jovens nos países em desenvolvimento”.


Do total de sete bilhões de pessoas no mundo, quase dois bilhões estão na faixa entre 10 e 24 anos de idade, sendo a maioria nos países em desenvolvimento. Os piores problemas enfrentados pela juventude são a pobreza, o desemprego elevado, a educação inadequada, a saúde precária e a violência. As meninas sofrem, ainda, com a falta de acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva que evitariam a gravidez indesejada, abortos inseguros, e infecções sexualmente transmissíveis.


Links para matérias da ONU/UNFPA:




Leituras Afins:

Baldus, Herbert. Tapirapé: Tribo Tupí no Brasil Central. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1970.

Corrêa, Marcos Sá (Org.) Sinais da Vida: Algumas Histórias de quem Cuida da Natureza no Brasil. Fundação o Boticário de Proteção à Natureza, 2005.

Klasen, Stephan e Wink, Claudia . Women: Revisiting the Debate. Feminist Economics, 2003. Disponível no site: http://ssrn.com/abstract=350760

Langfur, Hal . Myths of Pacification: Brazilian Frontier Settlement and the Subjugation of the Bororo Indians. Journal of Social History. 32, no. 4: 879, 1999.

Lévi-Strauss, Claude . Tristes Tropiques. New York: Atheneum, 1974.

Schwarcz, Lilia Katri Moritz. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Pensamento Racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Spivak, Gayatri C. e Harasym, Sarah (edit.). The Post-Colonial Critic: Interviews, Strategies, Dialogues. New York: Routledge, 1990.

Spivak, Gayatri C . Can the Subaltern Speak?. in Marxism and the Interpretation of Culture (1988): 271–313.*
*Traduzido para o português pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): Pode o subalterno falar? Editora UFMG, 2010. 133 pp.

–––––––––––––––. A Critique of Postcolonial Reason: Towards a History of the Vanishing Present. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1999.

–––––––––––––––. An Aesthetic Education in the Era of Globalization. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2012.

Wagley, Charles . Welcome of Tears: The Tapirapé Indians of Central Brazil. Waveland Press, 1983.

Sobre esta Blogueira:

Sandra Machado é jornalista e professora universitária. Doutora em História – com pesquisa em Estudos de Gênero, das Mulheres, Cinema e Multiculturalismo, pela Universidade de Brasília (UnB). É também Mestra em Cinema e Vídeo pela American University, Washington, D.C. Trabalhou como repórter e produtora para mídias audiovisuais e impressas - Correio Braziliense, Jornal do Brasil, TV Globo e o Caderno de Livros de O Globo. Sua tese de doutorado está em processo de edição em livro, intitulado Câmera Clara - Tela Obscura: Estereótipos Femininos e Questões de Gênero nos Cinemas. Editora Francis & Verbena.

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